terça-feira, 16 de julho de 2013

a cinza das horas.

"Olha as minhas mãos. Parecem limpas, não é? E no entanto já mataram, por paixão e por vingança. Por paixão porque aquilo que não me pode pertencer não pertencerá a mais ninguém; e por vingança porque às vezes o sangue limpa a dor da alma, e a honra... Sou dono do dia e da noite, e deste mar que nos há-de levar. Escreve-me, peço-te, enquanto a tua imagem permanece nítida perto de mim (...) É um lugar bom para morrer num poema. Sempre achei que não se deve revisitar os lugares da paixão. São lugares escuros, onde o corpo se move com dificuldade e sufoca. A ausência de alguém alastra neles até doer. Nada resta do que ali vivemos. Porque é do silêncio poroso do anjo mudo, da fala incandescente do seu olhar que, de quando em quando, surge o poema. Vem, antes que os meus olhos só vejam o que tu não vês, e as minhas mãos já não toquem o que tu tocaste...e a tua boca se canse de procurar o que de ti ainda possuo, e do teu nome não reste mais do que uma metade do meu. Noite após noite, falo-te, amo-te sem que o saibas. Posso tocar-te sem sentires sequer a minha presença. Posso estar, sem estar. Trago a cinza das horas nos cabelos e os dias da paixão onde não há dias nenhuns. Trago-te as palavras, e este cigarro que fumaremos a dois... e do mar recolhi esta coroa de rubras escamas e o silêncio dos náufragos. Começamos, então, a imitar a vida um do outro. E abraçados amamo-nos como se fosse a última vez... No entanto, recordo, deixaste-me sobre a pele um rasgão que já não dói. Mas quando a memória da noite consegue trazer-te intacto, fecho os olhos, o corpo e a alma latejam de dor. Dantes, o olhar seduzia e matava outro olhar. Agora, odeio-te por não me pertenceres mais. Odeio-te. Abro os olhos. Regresso ao meu corpo e odeio-te. E, quem sabe se no meio de tanto ódio não te perdoaria - mas ambos sabemos que o perdão não existe." in Anjo Mudo - Al Berto.

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