quarta-feira, 24 de julho de 2013

mais impossível do que a vida.

'Se te aprendessem as minhas mãos, forma do vento a cevada pura, de ti viriam cheias as minhas mãos sem nada. Se uma vida dormisses na minha espuma, que frescura indecisa ficaria no meu sorriso? No entanto és tu que te moverás na matéria da minha boca, e serás uma árvore a dormir e a acordar onde existe o meu sangue. Beijar os teus olhos será morrer pela esperança. Ver no aro de fogo de uma entrega a tua carne de vinho roçada pelo espírito de Deus, será criar-te para luz dos meus pulsos e instante do meu perpétuo instante. Eu devo rasgar a minha face para que a tua se encha de um minuto sobrenatural, devo murmurar cada coisa do mundo até que sejas o incêndio da minha voz. As águas que um dia nasceram onde marcaste o peso jovem da carne, aspiram longamente a nossa vida. As sombras que rodeiam o êxtase, os bichos que levam ao fim do instinto o seu bárbaro fulgor, o rosto divino impresso no lodo, a casa morta, a montanha inspirada, o mar, os centauros do crepúsculo - aspiram longamente a nossa vida. Por isso é que estamos a morrer na boca um do outro. Por isso é que nos desfazemos no arco do verão, no pensamento da brisa, no sorriso deserto, no peixe, no cubo, no linho, no mosto - no amor mais impossível do que a vida.' - Helder. H.

terça-feira, 16 de julho de 2013

a cinza das horas.

"Olha as minhas mãos. Parecem limpas, não é? E no entanto já mataram, por paixão e por vingança. Por paixão porque aquilo que não me pode pertencer não pertencerá a mais ninguém; e por vingança porque às vezes o sangue limpa a dor da alma, e a honra... Sou dono do dia e da noite, e deste mar que nos há-de levar. Escreve-me, peço-te, enquanto a tua imagem permanece nítida perto de mim (...) É um lugar bom para morrer num poema. Sempre achei que não se deve revisitar os lugares da paixão. São lugares escuros, onde o corpo se move com dificuldade e sufoca. A ausência de alguém alastra neles até doer. Nada resta do que ali vivemos. Porque é do silêncio poroso do anjo mudo, da fala incandescente do seu olhar que, de quando em quando, surge o poema. Vem, antes que os meus olhos só vejam o que tu não vês, e as minhas mãos já não toquem o que tu tocaste...e a tua boca se canse de procurar o que de ti ainda possuo, e do teu nome não reste mais do que uma metade do meu. Noite após noite, falo-te, amo-te sem que o saibas. Posso tocar-te sem sentires sequer a minha presença. Posso estar, sem estar. Trago a cinza das horas nos cabelos e os dias da paixão onde não há dias nenhuns. Trago-te as palavras, e este cigarro que fumaremos a dois... e do mar recolhi esta coroa de rubras escamas e o silêncio dos náufragos. Começamos, então, a imitar a vida um do outro. E abraçados amamo-nos como se fosse a última vez... No entanto, recordo, deixaste-me sobre a pele um rasgão que já não dói. Mas quando a memória da noite consegue trazer-te intacto, fecho os olhos, o corpo e a alma latejam de dor. Dantes, o olhar seduzia e matava outro olhar. Agora, odeio-te por não me pertenceres mais. Odeio-te. Abro os olhos. Regresso ao meu corpo e odeio-te. E, quem sabe se no meio de tanto ódio não te perdoaria - mas ambos sabemos que o perdão não existe." in Anjo Mudo - Al Berto.