segunda-feira, 28 de abril de 2014

heróis não nos faltam. faltam-nos guardiões.

"Começar é fácil. Acabar é mais fácil ainda. Chega-se sempre à primeira frase, ao primeiro número da revista, ao primeiro mês de amor. Cada começo é uma mudança e o coração humano vicia-se em mudar. Vicia-se na novidade do arranque, do início, da inauguração, da primeira linha na página branca, da luz e do barulho das portas a abrir. Começar é fácil. Acabar é mais fácil ainda. Por isso respeito cada vez menos estas actividades. Aprendi que o mais natural é criar e o mais difícil de tudo é continuar. A actividade que eu mais amo e respeito é a actividade de manter. Percebo hoje a razão por que Auden disse que qualquer casamento duradoiro é mais apaixonante do que a mais acesa das paixões. Guardar é um trabalho custoso. As coisas têm uma tendência horrível para morrer. Salvá-las desse destino é a coisa mais bonita que se pode fazer. Haverá verbo mais bonito do que «salvaguardar»? É fácil uma pessoa bater com a porta, zangar-se e ir embora. O que é difícil é ficar. Preservar é defender a alma do ataque da matéria e da animalidade. Deixadas sozinhas, as coisas amarelecem, apodrecem e morrem. Não há nada mais fácil do que esquecer o que já não existe. Começar do zero, ao contrário do que sempre pretenderam todos os revolucionários do mundo, é gratuito. Faz com que não seja preciso estudar, aprender, respeitar, absorver, continuar. |heróis não nos faltam. faltam-nos guardiões| Criar é fácil. O difícil é continuar."

Cardoso E, Miguel.

terça-feira, 22 de abril de 2014

aprendemos a abandonar, juntos.

seria a vontade primogénita de acordar de modo diferente o que nos faria prever um abraço mútuo no final. assim como a repugnância ao exterior ilustrava a fuga perfeita. o argumento que nos permitia ficar e sermos tudo aquilo que nos apetecesse ser um para o outro. sem recearmos perder qualquer coisa num amanhã próximo. acho que aconteceu porque ambos tínhamos uma opinião formada em tempos anteriores. no resultado de derrotas passadas apercebera-mo-nos de vitórias comuns. soubemos até conquistar lugares diferentes. construímos pertences em realidades difusas, numa criação constante de mundos desiguais. perante uma analogia de prismas onde nos foi permitido viver e construir. e alguns amores que aprendemos a abandonar, juntos. Não significa uma pertença a um lugar quando o conservamos em nós na base de um medo de perda imutável. quando nos deixamos apegar à misera instância que existe sob a penitência que nos une a um momento. o resultado será sempre o mesmo: uma mortificação de um Eu que nenhum de nós merece sentir.

sexta-feira, 18 de abril de 2014

o medo em muitos sentidos.

no caminho absurdo dos teus olhos eu sei que nunca estive em ti. ou nunca estiveste em mim. ou nunca tivemos um desejo mútuo de sermos ambos. em dois. construímos em dois as vidas que os dois não permitimos juntar. e separámo-nos pouco depois da nascença. é verdade quando a tua mão no meu peito dizia que havia em mim coisas inexplicáveis. era tudo verdade em mim. era verdade quando não sabia o que dizer. era verdade quando não te mentia sobre todas as ausências em relação a ti. era um fluxo que eu não tinha capacidades para acompanhar. uma carga que nunca quis ter nos meus ombros. porque sempre conheci a necessidade de uma janela aberta por onde pudesse saltar a qualquer momento. sempre que a fuga ao coração fosse um requisito máximo. um compromisso de sóis. prevejo em ti o apetite que me alimenta por dentro, mas não o podes proclamar Amor. isso é quando não precisas de apetite. é quando ao teu lado a obra-prima não está completa, mas tu venera-a mesmo assim. é quando te rouba pedaços de ti, mas tu cedes para desfrutar. quando completas um Outro. quando não te é pedido, mas tu dás. quando conheces de olhos-vendados mas ainda pensas que nem tudo está à vista. quando alguém diz que "o Amor haveria de curar o medo em muitos sentidos e haveria de conferir sentido à vida".